Fotos por Felipe Chiaramonte, Alexandre Ferreira e Patricia Cividanes
Encontro Performance noise electroacoustic live jazz jam meeting dance body drone
http://soundcloud.com/filosonia/encontroperformance
Verde {soam Henrique Iwao, Alexandre Fenerich, Valério Fiel da Costa, Rodolfo Valente, Márcio Black, J-P. Caron, Leo Alves Vieira, Renzo Filinich, Clemens Hausch, Gabriel Kolyniak, Chiu Winners, f?} [morfomicrofonado por Guga Stroeter, Kiki & filha] (performam Thiago Judas, Marília Bonbom, Otávio Donasci, Antro Exposto, entre outros)
Fotografia: Felipe Chiaramonte
Anotações sobre o evento Encontros de Performance (21 de outubro de 2009, Centro Cultural Rio Verde)
O aspecto pacífico da tarde não antecipava a intensidade e a densidade das trocas que a noite, já próxima, comportaria. Um grupo heterogêneo de artistas, alguns, velhos conhecidos, outros, recentemente apresentados, preparava o espaço do Centro Cultural Rio Verde, assentando-se em diferentes espaços: bar, quiosque, fonte, sinuca, coreto... Uma miniatura de praça de cidade do interior, que logo seria ocupada por lentos fantasmas e velozes ruídos.
O público entrava descontinuamente. Um primeiro, um segundo... súbito, dezenas. Logo anoiteceu e, numa nova quietude, um médico barbado curava, com microprojeções de luz, um doente dos nervos, interpretado pelo performer Tiago Judas. Ora, se tomarmos o conjunto de acontecimentos dessa noite como uma construção discursiva, embora fragmentária e não-intencional no todo (pois cada artista não sabia exatamente como suas ações se combinariam com as dos outros), tal imagem de medicalização conferiu à noite, pelo menos aos meus olhos, o simbolismo da arte como um meio de cura – seja de um sujeito adoecido, seja de uma sociedade moribunda.
Como se sabe, a etapa histórica que hoje vivemos representa um estado agudo de uma doença que acomete há alguns séculos a humanidade. Dessa doença, não sabemos precisamente a natureza, mas conhecemos seus sintomas; não é necessário – nem propício – que sejam ora enumerados. Mas sabemos que é uma doença dos nervos coletiva, cuja principal repercussão é a destruição da possibilidade de relacionar-se com o outro e com os outros. Alguma malícia, algum desejo de submissão, a má compreensão do que vem a ser poder, as vaidades de certos seres implacáveis...
A experimentação coletiva das emoções em estado de tensionamento, seguido de uma súbita distensão e, enfim, de uma nova possibilidade de ser é o processo da catarse, que, no universo dos gregos, tinha uma definida função social, agregada ao espaço do teatro, mais especificamente, da encenação trágica. Nossa sociedade, habituada a delegar à arte a função exclusiva do entretenimento, talvez só venha a experimentar a fantasia como espaço de explosões transformadoras nas novas formas de criação – compreenda-se, o espaço da performance e dos happenings – se os artistas dispuserem-se ao sacrifício moral.
Nessa dinâmica do sacrifício, inscreveu-se também a segunda performance da noite, de Marília Bombom. Despindo sua roupa de gueixa japonesa e, como um bolo, fazendo-se cobrir de chantili, sentada imóvel no coreto, embalada por música eletrônica similar à de uma boate (executada pelo DJ Tomás), ela se dispôs ao paladar do público. Natália procurava levar alguns homens da platéia para degustar o chantili; tal é o medo ou o embaraço que ainda gera qualquer referência à sexualidade (mesmo nos meios “neotropicalistas”), poucos quiseram entrar no coreto e degustar um pouquinho de doce. A performer, com o olhar abandonado dentro de si mesma, esperou.
Quando a batida da música acabou, os outros músicos começaram a deflagrar uma zona de ruídos. As pessoas, caminhando livres entre espaços, experimentavam de formas singulares as qualidades sonoras que se agitavam; às vezes, reconhecia-se o som como ruído de algo; outras vezes, os ruídos já não remetiam a objetos específicos, eram sons selvagens, ritmados como máquinas de desfazimento da escuta (refiro-me mais especificamente ao que foi executado por f?, que foi quem mais pude escutar). Pouco a pouco, a selvageria tornou-se generalizada, as compreensões fizeram-se menos do que nada, e, enquanto declamava, aquele que escreve estas linhas já estava cego. A última coisa que viu foi uma mulher envolvida por um casulo de plástico.
Gabriel Kolyniak
Fotografia: Patricia Cividanes
Numa sala semi-escura (clínica ou prisão kafkiana?), dois homens vestidos de branco examinam um outro que está sentado numa cama. TUDO MERGULHA NUM BRANCO ARTIFICIAL. Com um aparelhinho que emite luzes, um homem vai sondando a superfície do corpo do suposto paciente. Há uma atmosfera de imobilidade. Ar de sufocação. Exasperação. O ambiente escurece. Entretanto, nenhum homem exprime uma desesperança em relação ao evento que se passa. Não há nenhum vestígio de dor. Nenhuma comunicação efetiva entre os homens. Ninguém fala.
Quem fala nesse espaço branco?
O que vemos é o exame meticuloso. Seria a forma mais neutra e impassível da operação médica, ou a própria despersonalização dos seres num claustro imaginário? A cor branca dos uniformes contrasta com luzes verdes, violetas, azuis. ASSOMBRO de cores que cintilam na sombra, na espessa matéria do silêncio.
E o paciente, mudo, sem a mínima movimentação.
SECURA. ASSEPSIA.
Nulidade, cujas bordas e contornos esboçados sugerem um quadro sonambúlico. O espectador espera que algo produza a quebra da monotonia. Mas nada disso ocorre. Somente quali-signos (signos que apresentam qualidades sensórias como cor, volume etc) – as luzinhas imóveis – que não remetem a nenhuma referencialidade. Luzes que voltejam obstinadas, insetos do vazio, como se entre a respiração do paciente e esses animais que insistem na escuridão, houvessem espectros, uma cor amarga, ressequida, artificial, no entanto, puramente sensível como são os ossos, o nervo, o crânio, a massa de todos os corpos brancos.
Será o PESADELO do paciente? Não é possível saber em que universo estamos, pois os ícones não nos remetem a nenhuma ordem real, não traçam entre os elementos cênicos quaisquer correspondências ordinárias. Num momento, parece que tudo pode acontecer. Ou simplesmente estacionar: vazio horrível que pesa, constrição sem sofrimento. Narrativa abolida. Os sons reduzidos a poucos ruídos e intermitências. Sonho de um monstro? Passagem para o mundo irreal? Não se sabe. Talvez seja esse o jogo icônico, como Duchamp jogando xadrez. É talvez a falta que, no plano do imaginário, constitui o sujeito em relação ao Outro. É sempre a ausência de algo que impele o sujeito a uma cadeia infinita de significantes.
Quando suspendemos o sentido convencional do código, vemos com novos olhos. Deixamos nossos vícios simplórios. Diante de nós, sucede o evento, o acontecimento (Deleuze) que está na fronteira entre as coisas existentes e as proposições enunciadas. O acontecimento são todas as possibilidades combinadas ao Acaso.
SENDA DO INCORPÓREO. Uma mulher nua caminha em direção ao seu trono. Soberana: uma espécie de ninfa-rainha-devassa exalando um aroma baudelaireano. “Em seu polido olhar há minerais radiantes. E nessa têmpera de insólitas quimeras, entre anjo indecifrado e esfinge de outras eras, em que tudo é só luz, metal, ouro e diamantes, esplende para sempre, em seu frívolo império, a fria majestade da mulher estéril.” Esfinge celeste, cristal adâmico rodeado por olhos incandescentes. E nessa extática caminhada, uma outra figura que lhe acompanha. Por fim, a rainha se senta e permanece imóvel por toda a eternidade. Um ritual se inicia. Uma figura feminina espalha lentamente um creme branco (chantili em spray) por todo o corpo da rainha. JOGO ERÓTICO? A platéia é convidada a saborear com as mãos, a língua, o creme derramado no corpo da soberana. Unicamente para seu prazer narcísico, absolutamente sádico. Não há troca, reciprocidade. Nesse ato de prazer, não se vê nenhuma relação amorosa. Contempla-se um corpo ideal, uma redoma, um rochedo vazio, pólo narcísico de absorção. Ritual de uma soberana e os seus súditos-espectadores.
Noutra sala, projetam-se vídeos com figuras urbanas, carregadores, catadores etc. São cenas, sobreposições, sentidos vários. Mas com os ruídos e o caos sonoro, estas cenas também gravitam em torno de uma constelação instável. Não se identificam os personagens. São todos o mesmo? Eu e outro somos amorfos, blocos de uma única matéria?
E simultaneamente as vozes de poetas que são anjos violetas suspensos na corda do abismo. Evocando aparições, estrelas alfa ruminando aos golfos de violeta marrom... em meio à mixórdia de batidas, estridências, ruídos cortantes. Desequilíbros. Pós-modernas irrupções: uma rede transparente abrigando um corpo de uma mulher. CASULO. CASULO. CASULO. UM PENSAMENTO-CORPO INFORMULADO. INFESTADO de plenas curvas. Símbolo de uma castração feminina, ausência do cetro fálico? Indecidível. Horizonte de improváveis teias de associação.
Na simultaneidade de todas essas mixórdias e hibridismos, acelera-se um homem-máquina que não cessa de tirar peças, ordenar o caos, desenredar os fluxos descodificados. Alta voltagem de raios e árvores em rubras catástrofes. Perfomance, música e poesia em aliança: lagunas na cidade de hortênsias/ resquício das feridas no seu dorso/ algas de acídula escarpa...
Chiu Yi Chih é mestre em filosofia e poeta.
Realização: Centro Cultural Rio Verde
Coordenação Ruy Filho
Curadoria e Produção: Ligia Moreno, Amanda Vargas, Felipe Ribeiro, Guga Stroeter, Kiki Vassimon, e Cia de Teatro Antro Exposto
(Diego Torraca, Guilherme Gorski, Tiago Torraca, Raiani Teichmman)