Performance e Catarse - Gabriel Kolyniak


Fotografia: Felipe Chiaramonte
Anotações sobre o evento Encontros de Performance (21 de outubro de 2009, Centro Cultural Rio Verde)

O aspecto pacífico da tarde não antecipava a intensidade e a densidade das trocas que a noite, já próxima, comportaria. Um grupo heterogêneo de artistas, alguns, velhos conhecidos, outros, recentemente apresentados, preparava o espaço do Centro Cultural Rio Verde, assentando-se em diferentes espaços: bar, quiosque, fonte, sinuca, coreto... Uma miniatura de praça de cidade do interior, que logo seria ocupada por lentos fantasmas e velozes ruídos.

O público entrava descontinuamente. Um primeiro, um segundo... súbito, dezenas. Logo anoiteceu e, numa nova quietude, um médico barbado curava, com microprojeções de luz, um doente dos nervos, interpretado pelo performer Tiago Judas. Ora, se tomarmos o conjunto de acontecimentos dessa noite como uma construção discursiva, embora fragmentária e não-intencional no todo (pois cada artista não sabia exatamente como suas ações se combinariam com as dos outros), tal imagem de medicalização conferiu à noite, pelo menos aos meus olhos, o simbolismo da arte como um meio de cura – seja de um sujeito adoecido, seja de uma sociedade moribunda.

Como se sabe, a etapa histórica que hoje vivemos representa um estado agudo de uma doença que acomete há alguns séculos a humanidade. Dessa doença, não sabemos precisamente a natureza, mas conhecemos seus sintomas; não é necessário – nem propício – que sejam ora enumerados. Mas sabemos que é uma doença dos nervos coletiva, cuja principal repercussão é a destruição da possibilidade de relacionar-se com o outro e com os outros. Alguma malícia, algum desejo de submissão, a má compreensão do que vem a ser poder, as vaidades de certos seres implacáveis...

A experimentação coletiva das emoções em estado de tensionamento, seguido de uma súbita distensão e, enfim, de uma nova possibilidade de ser é o processo da catarse, que, no universo dos gregos, tinha uma definida função social, agregada ao espaço do teatro, mais especificamente, da encenação trágica. Nossa sociedade, habituada a delegar à arte a função exclusiva do entretenimento, talvez só venha a experimentar a fantasia como espaço de explosões transformadoras nas novas formas de criação – compreenda-se, o espaço da performance e dos happenings – se os artistas dispuserem-se ao sacrifício moral.

Nessa dinâmica do sacrifício, inscreveu-se também a segunda performance da noite, de Marília Bombom. Despindo sua roupa de gueixa japonesa e, como um bolo, fazendo-se cobrir de chantili, sentada imóvel no coreto, embalada por música eletrônica similar à de uma boate (executada pelo DJ Tomás), ela se dispôs ao paladar do público. Natália procurava levar alguns homens da platéia para degustar o chantili; tal é o medo ou o embaraço que ainda gera qualquer referência à sexualidade (mesmo nos meios “neotropicalistas”), poucos quiseram entrar no coreto e degustar um pouquinho de doce. A performer, com o olhar abandonado dentro de si mesma, esperou.

Quando a batida da música acabou, os outros músicos começaram a deflagrar uma zona de ruídos. As pessoas, caminhando livres entre espaços, experimentavam de formas singulares as qualidades sonoras que se agitavam; às vezes, reconhecia-se o som como ruído de algo; outras vezes, os ruídos já não remetiam a objetos específicos, eram sons selvagens, ritmados como máquinas de desfazimento da escuta (refiro-me mais especificamente ao que foi executado por f?, que foi quem mais pude escutar). Pouco a pouco, a selvageria tornou-se generalizada, as compreensões fizeram-se menos do que nada, e, enquanto declamava, aquele que escreve estas linhas já estava cego. A última coisa que viu foi uma mulher envolvida por um casulo de plástico.

Gabriel Kolyniak

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