Fotografia: Patricia Cividanes
Numa sala semi-escura (clínica ou prisão kafkiana?), dois homens vestidos de branco examinam um outro que está sentado numa cama. TUDO MERGULHA NUM BRANCO ARTIFICIAL. Com um aparelhinho que emite luzes, um homem vai sondando a superfície do corpo do suposto paciente. Há uma atmosfera de imobilidade. Ar de sufocação. Exasperação. O ambiente escurece. Entretanto, nenhum homem exprime uma desesperança em relação ao evento que se passa. Não há nenhum vestígio de dor. Nenhuma comunicação efetiva entre os homens. Ninguém fala.
Quem fala nesse espaço branco?
O que vemos é o exame meticuloso. Seria a forma mais neutra e impassível da operação médica, ou a própria despersonalização dos seres num claustro imaginário? A cor branca dos uniformes contrasta com luzes verdes, violetas, azuis. ASSOMBRO de cores que cintilam na sombra, na espessa matéria do silêncio.
E o paciente, mudo, sem a mínima movimentação.
SECURA. ASSEPSIA.
Nulidade, cujas bordas e contornos esboçados sugerem um quadro sonambúlico. O espectador espera que algo produza a quebra da monotonia. Mas nada disso ocorre. Somente quali-signos (signos que apresentam qualidades sensórias como cor, volume etc) – as luzinhas imóveis – que não remetem a nenhuma referencialidade. Luzes que voltejam obstinadas, insetos do vazio, como se entre a respiração do paciente e esses animais que insistem na escuridão, houvessem espectros, uma cor amarga, ressequida, artificial, no entanto, puramente sensível como são os ossos, o nervo, o crânio, a massa de todos os corpos brancos.
Será o PESADELO do paciente? Não é possível saber em que universo estamos, pois os ícones não nos remetem a nenhuma ordem real, não traçam entre os elementos cênicos quaisquer correspondências ordinárias. Num momento, parece que tudo pode acontecer. Ou simplesmente estacionar: vazio horrível que pesa, constrição sem sofrimento. Narrativa abolida. Os sons reduzidos a poucos ruídos e intermitências. Sonho de um monstro? Passagem para o mundo irreal? Não se sabe. Talvez seja esse o jogo icônico, como Duchamp jogando xadrez. É talvez a falta que, no plano do imaginário, constitui o sujeito em relação ao Outro. É sempre a ausência de algo que impele o sujeito a uma cadeia infinita de significantes.
Quando suspendemos o sentido convencional do código, vemos com novos olhos. Deixamos nossos vícios simplórios. Diante de nós, sucede o evento, o acontecimento (Deleuze) que está na fronteira entre as coisas existentes e as proposições enunciadas. O acontecimento são todas as possibilidades combinadas ao Acaso.
SENDA DO INCORPÓREO. Uma mulher nua caminha em direção ao seu trono. Soberana: uma espécie de ninfa-rainha-devassa exalando um aroma baudelaireano. “Em seu polido olhar há minerais radiantes. E nessa têmpera de insólitas quimeras, entre anjo indecifrado e esfinge de outras eras, em que tudo é só luz, metal, ouro e diamantes, esplende para sempre, em seu frívolo império, a fria majestade da mulher estéril.” Esfinge celeste, cristal adâmico rodeado por olhos incandescentes. E nessa extática caminhada, uma outra figura que lhe acompanha. Por fim, a rainha se senta e permanece imóvel por toda a eternidade. Um ritual se inicia. Uma figura feminina espalha lentamente um creme branco (chantili em spray) por todo o corpo da rainha. JOGO ERÓTICO? A platéia é convidada a saborear com as mãos, a língua, o creme derramado no corpo da soberana. Unicamente para seu prazer narcísico, absolutamente sádico. Não há troca, reciprocidade. Nesse ato de prazer, não se vê nenhuma relação amorosa. Contempla-se um corpo ideal, uma redoma, um rochedo vazio, pólo narcísico de absorção. Ritual de uma soberana e os seus súditos-espectadores.
Noutra sala, projetam-se vídeos com figuras urbanas, carregadores, catadores etc. São cenas, sobreposições, sentidos vários. Mas com os ruídos e o caos sonoro, estas cenas também gravitam em torno de uma constelação instável. Não se identificam os personagens. São todos o mesmo? Eu e outro somos amorfos, blocos de uma única matéria?
E simultaneamente as vozes de poetas que são anjos violetas suspensos na corda do abismo. Evocando aparições, estrelas alfa ruminando aos golfos de violeta marrom... em meio à mixórdia de batidas, estridências, ruídos cortantes. Desequilíbros. Pós-modernas irrupções: uma rede transparente abrigando um corpo de uma mulher. CASULO. CASULO. CASULO. UM PENSAMENTO-CORPO INFORMULADO. INFESTADO de plenas curvas. Símbolo de uma castração feminina, ausência do cetro fálico? Indecidível. Horizonte de improváveis teias de associação.
Na simultaneidade de todas essas mixórdias e hibridismos, acelera-se um homem-máquina que não cessa de tirar peças, ordenar o caos, desenredar os fluxos descodificados. Alta voltagem de raios e árvores em rubras catástrofes. Perfomance, música e poesia em aliança: lagunas na cidade de hortênsias/ resquício das feridas no seu dorso/ algas de acídula escarpa...
Chiu Yi Chih é mestre em filosofia e poeta.
• • • • • • • • • • • • • • •
Realização Centro Cultural Rio Verde
Coordenação Ruy Filho
Curadoria e Produção:
Ligia Moreno
Amanda Vargas
Felipe Ribeiro
Guga Stroeter
Kiki Vassimon
& Cia. de Teatro Antro Exposto
(Diego Torraca, Guilherme Gorski, Tiago Torraca, Raiani Teichmman)